A cozinha regional vai desaparecer?
Diante da globalização, a culinária típica é ameaçada. Mas defender esse patrimônio é responsabilidade de todos
Por Guta Chaves
A cozinha regional vai desaparecer. Essa frase ficou travada na garganta e martelando na minha cabeça. Foi proferida por Rafael García Santos, crítico espanhol dos mais conceituados atualmente, em resposta a uma pergunta que fiz a ele durante uma mesa redonda com a participação de especialistas da gastronomia. A pergunta era se no seu guia de restaurantes, Lo Mejor de la Gastronomia, ele poderia dar três estrelas a uma excelente cozinha regional. "A cozinha regional vai desaparecer", respondeu. Completou a frase dizendo que a culinária típica tinha data marcada para terminar. E que, então, o mundo giraria em torno de ingredientes industrializados e artificiais, produzidos em laboratório.
Não há dúvida de que eventos como este, que aconteceu recentemente na Universidade Anhembi Morumbi, são de extrema relevância para o crescimento da nossa gastronomia. A troca de informações e a crítica (construtiva) são excelentes ferramentas para o desenvolvimento em todos os campos. E por isso é importante refletir sobre os pontos de vista em vez de aceitá-los simplesmente como verdades absolutas.
Pois bem, vou contar o que me fez resgatar essa história. Foi uma conversa informal que tive há alguns dias com os grandes chefs Laurent Suaudeau e Roger Jaloux numa mesa de frente para o mar, no hotel Sofitel Jequetimar, no Guarujá. Eu estava lá para fazer os comentários do evento "Harmonia de Sabores", que fazia a ligação entre a gastronomia do filme Um Bom Ano e o menu preparado pelo chef Jalout com pratos provençais, fazendo alusão ao cenário da fita, a região da Provence.
Antes de contar a conversa, para quem não conhece bastante esses dois grandes chefs, gostaria de contextualizá-los: Roger Jaloux foi, durante décadas, chef-executivo do restaurante Paul Bocuse, em Lyon, sendo portanto quem colaborou ativamente pelas ininterruptas três estrelas que o restaurante mantém há quase 30 anos, uma lenda viva da gastronomia mundial. Laurent, por sua vez, trabalhou com Jaloux no restaurante de Paul Bocuse e o considera seu grande mestre. E faz 28 anos que Laurent Suaudeau foi enviado para o Brasil por essas feras de Lyon, acabando por escolher o país como sua segunda pátria. É ele um dos responsáveis pela valorização dos ingredientes nacionais, numa época em que mandioquinha e cará não entravam nem pela porta dos fundos dos restaurantes.
Voltando ao bate-papo, Laurent começou a falar do despreparo de muitos jovens chefs que já querem sair por aí desconstruindo sem ter a mínima noção das técnicas básicas. A verdade é que muitos dos jovens chefs usam mais os ingredientes nacionais por moda do que por uma convicção nacionalista.
Os dois chefs estavam estarrecidos com o quanto a boa cozinha de técnicas francesas e gosto apurado, seja ela clássica ou moderna, estava sendo deixada de lado, pelo encantamento causado pela cozinha de vanguarda. "As experiências são interessantes, mas parece que só essa culinária é boa hoje", diz Laurent Suaudeau. "As técnicas de cozinha continuam sendo as francesas, inclusive as que antecedem os experimentos vanguardistas de laboratório", diz. É por isso que é importante que os jovens chefs conheçam primeiro muito bem as técnicas de base, antes de se aventurarem. "A cozinha não é feita por químicos, mas por cozinheiros. São estes últimos que dão o sabor ao prato", completou Roger Jaloux. Nas opiniões de ambos, é necessário ser um gênio para transformar uma cozinha de laboratório, de experimentos químicos, em grande cozinha. "Não sou contra, mas só profissionais muito experientes e talentosos podem fazê-lo", sentenciou Laurent Suaudeau.
Durante a conversa, eles também ressaltavam o quanto era importante resgatar valores regionais, enfatizando que o Brasil vinha despontando por ter um grande manancial de alimentos e de cultura gastronômica. Foi neste ponto que lembrei da frase de Rafael García Santos e a coloquei na mesa. Foi fervorosa a indignação de ambos. Como vai desaparecer? E onde entra a rica culinária amazonense, com seu pato no tucupi; o vatapá, a moqueca baiana; o frango com quiabo e ora-pró-nobis; os alfenins, verônicas (doces) e o arroz de pequi, de Goiás; o churrasco com chimarrão, do Sul? Nem os chefs nem eu vimos a possibilidade destes pratos deixarem de existir. Ao contrário, são eles, por exemplo, que estimulam o turismo gastronômico tão em voga. Quem não gosta de ir para uma localidade e provar das coisas mais típicas? Se os turistas procuram cada vez mais os sabores regionais, isso mostra que esses se mantêm vivos e que o vento sopra a favor da diversidade. A gastronomia regional é expressão da cultura e, sendo assim, um viés para se conhecer a essência de cada povo.
É claro que não podemos deixar de fazer um contraponto aqui com a globalização. É fato que cada vez mais redes de fast-food entram com tudo inclusive em países da Europa em que a gastronomia é um forte traço cultural, como ocorre na França e Itália, por exemplo. Dolores Freixa, historiadora, guia de turismo cultural e minha parceira em vários projetos, acabou de voltar da Itália trazendo de Milão uma foto muito curiosa: na chiquérrima Galeria Vittorio Emanoelle II, repleta das grifes mais charmosas e de deliciosos cafés, estava lá plantado um Mc Donald's. A única diferença era que, para não destoar da decoração deste lugar tradicional, a loja da rede norte-americana teve de trocar as cores de seu logotipo amarelo e vermelho berrante para um discreto preto e branco. Claro que a Dolores fez uma foto para registrar a curiosa invasão. "Acontece que é pouco freqüentado, não sei se por conta do logotipo que não é imediatamente identificado, ou por um consenso da população local, como um boicote à tamanha afronta", analisa Dolores. Mas é uma realidade que a pasteurização da comida, principalmente no âmbito popular, é crescente e as redes de comida rápida são opções baratas para se alimentar. Um sanduíche simples nos Mc Donald's italiano custa 50 centavos de euro, pouco mais de 1 real.
Talvez por isso mesmo tenhamos que louvar ainda mais os restaurantes de especialidades regionais, sejam eles de porte médio ou bem modestos. E, além disso, divulgá-los mais, incentivar sua existência - pois não é fácil a concorrência neste mundo globalizado. Acredito que seja uma missão de todos que têm a gastronomia como métier. Claro que dando atenção ao que é bom e não deixando de valorizar todas as outras tendências.
Chefs como Laurent Suaudeau e Roger Jaloux concordam que os chefs das mais variadas tendências bebem na fonte da cozinha regional. Sendo nosso patrimônio, precisamos ajudar a mantê-lo. Enfim, todas as boas cozinhas valem a pena. Sejam elas de vanguarda, clássicas ou regionais. Mas nunca devemos esquecer de nossas origens.
Por: Guta Chaves
de: ABAGA